Ao pensar nos sentimentos mais nobres e puros, dentre uma infinidade deles, certamente aquele que mais se destacará será o amor. Pergunta-se ainda, sobre esses amores, dentre as diversas formas, qual o mais genuíno? Subjetividades à parte, tenho a minha opinião: o amor dos pais para com os filhos.
Tudo que envolve a maternidade é sublime. Criar, proteger, brincar, ensinar, amar. Mas, para muitos, toda essa fantástica experiência somente será possível após a concepção e a gestação da criança. E é justamente aqui que nos deparamos com uma situação complexa para muitas famílias: gerar um filho em outra barriga.
Por muito tempo, mulheres impossibilitadas fisiologicamente de gerarem os próprios filhos e até mesmo casais homossexuais se viam obstados de realizarem sua vontade íntima da procriação. Todavia, com o avanço científico, principalmente no âmbito da genética, viabilizou-se a aplicação de técnicas de reprodução assistida que possuem o intuito de superar essas dificuldades.
BARRIGA SOLIDÁRIA X BARRIGA DE ALUGUEL: DIFERENÇAS
Um dos métodos de reprodução assistida diz respeito à inseminação artificial em uma genitora substituta. Em poucas palavras, primeiro se realiza uma fertilização in vitro, onde colhe-se o material genético dos pais biológicos visando a criação em laboratório de um gameta. Após, esse gameta resultante é transferido para o útero de uma terceira que irá gestar a criança. Ocorre, portanto, um “empréstimo” do útero para um casal impossibilitado de conceber filhos por algum motivo.
Apresentada sob vários nomes, a gestação por substituição, também conhecida como útero solidário, gestação por outrem ou, popularmente, barriga de aluguel; já é uma realidade no Brasil e no mundo. No que se refere ao uso dessas nomenclaturas, faz-se pertinente algumas ponderações.
De forma didática, pode-se dizer que a Barriga Solidária e a Barriga de Aluguel são espécies do mesmo gênero, diferenciando-se apenas em alguns nuances.
Na Barriga Solidária, o útero é doado temporariamente sem se exigir nenhuma contraprestação pecuniária -ou seja, de forma gratuita- durante o período de gestação do bebê. Na Barriga de Aluguel, por sua vez, a mãe hospedeira cede seu útero com fins lucrativos, de modo a transformar a gestação em um negócio.
Essa distinção se dá, principalmente, em decorrência dos pormenores relativos à aceitação global de tal prática médica. Isso porque ainda não se existe um consenso entre os países acerca da gestação por substituição, de modo que alguns toleram a prática de barriga de aluguel, enquanto outros só permitem a realização de forma bastante limitada (e.g. barriga solidária), existindo até aqueles Estados que vedam fervorosamente tal método em qualquer que seja a sua modalidade.
Contudo, independente dessas proibições ou restrições, é fato que a demanda pela reprodução por substituição vem crescendo ao redor do mundo, seja por casais heterossexuais impossibilitados de gerarem o filho ou por casais homoafetivos, todos em busca de realizarem um sonho.
UM DOS CASOS BRASILEIROS MAIS NOTÓRIOS: A HISTÓRIA DE PAULO GUSTAVO
Seria impossível falar sobre o tema sem mencionar um grande artista que cativou todo o Brasil com o seu talento e autenticidade. “Maior amor do mundo! Não cabe nas palavras!” assim escreveu Paulo Gustavo em uma postagem de declaração aos seus filhos em suas redes sociais.
Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros, nascido em 1978 no município de Niterói (RJ), foi um ator, humorista, escritor e diretor que ficou nacionalmente conhecido pela caracterização da personagem Dona Hermínia em ‘Minha Mãe é uma Peça’. Cheio de carisma e irreverencia, Paulo também já atuou em diversas séries humorísticas e filmes de comédia. Assumidamente homossexual desde a sua adolescência, deixou uma grande contribuição para a comunidade LGBTQIA+, haja vista sempre levantar reflexões e pautas acerca do tema em suas produções. Segundo o próprio, “rir é um ato de resistência”.
Em 2015 Paulo casou-se com o dermatologista Thales Bretas. Com o sonho de ter filhos, o casal partiu para os Estados Unidos no final de 2018 a fim de realizarem o procedimento através de barriga de aluguel. Em entrevistas, o ator explica que realizaram a inseminação em duas candidatas diferentes utilizando-se do gameta masculino de cada genitor. Assim, em agosto de 2019 nasceram Romeu e Gael, em San Diego, na Califórnia.
Lamentavelmente, aos 42 anos, em 4 de maio de 2021, Paulo Gustavo faleceu, vítima da COVID-19, deixando um enorme legado de amor, empatia e tolerância.
A GESTAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO NO BRASIL
Muitos ainda se perguntam o motivo do casal ter ido até os Estados Unidos para realizar o procedimento e por que não optaram pela realização no Brasil.
A realidade de Paulo e de seu marido Thales foi uma dentre tantas outras que ainda existem como óbice para muitos casais brasileiros.
Acontece que, a legislação do Brasil não regulamenta de maneira suficiente a reprodução assistida, de modo a deixar um vão normativo a esse respeito. Diante dessa lacuna, o Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão responsável pela fiscalização da atividade médica, estabeleceu algumas diretrizes básicas a serem seguidas nessas situações.
Primeiramente, cumpre esclarecer que a Resolução nº 2.168/2017 do CFM proíbe a barriga de aluguel. Ou seja, não se admite no Brasil, em nenhuma hipótese, a cessão de útero com caráter lucrativo ou comercial.
Igualmente, a Resolução é clara ao determinar os parâmetros que devem ser observados, os quais figuram como requisitos para a aplicação do método. Dessa forma, a cessão temporária gratuita de útero só poderá ser permitida nos casos em que houver algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética, bem como nos casos de união homoafetiva ou pessoa solteira.
Como se não bastasse, é necessário que a futura mãe hospedeira seja familiar do casal com parentesco consanguíneo até o quarto grau (mãe, filha, avó, irmã, tia, sobrinha ou prima do casal). Ausente o laço de parentesco, será exigido uma autorização do Conselho Regional de Medicina.
Perante esse cenário de restrições, muitos casais interessados não conseguem atender às disposições da Resolução, ficando inviabilizados de realizar o procedimento de gestação de substituição no Brasil. Em razão disso, muitos brasileiros têm procurado alternativas em países com legislações mais flexíveis.
A BARRIGA DE ALUGUEL NOS ESTADOS UNIDOS: A OPÇÃO DE PAULO GUSTAVO
Diante da possibilidade em conseguir uma gestação por substituição com maior facilidade, alguns países são referências no chamado “turismo reprodutivo”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a reprodução por outrem existe há mais de 30 anos, de modo que as leis norte-americanas que regem os acordos de barriga de aluguel variam por cada estado. Por exemplo, a barriga de aluguel é amplamente permitida e regulamentada na Califórnia – estado escolhido pelo ator Paulo Gustavo -, conforme dispõem as Seções 7960 – 7962 (2013) da Lei da Família da Califórnia. Nessa perspectiva, os custos com o procedimento também variam dependendo do estado escolhido, podendo custar entre US$ 90.000 e US$ 130.000 quando se leva em consideração os gastos da agência (se houver), o pagamento da mãe gestacional, os custos hospitalares, honorários advocatícios e afins.
Em via contrária, a título de ilustração, no estado de Michigan, o The Michigan Surrogate Parenting Act MCL Section 722.851 veda a barriga de aluguel, tornando todos os contratos nesse sentido nulos e inexequíveis como contrários à ordem pública, sem prejuízo das sanções penais.
Com efeito, outros países também atraem os olhares dos pretensos pais.
Na Ucrânia e na Geórgia, por exemplo, a barriga de aluguel é totalmente legal, inclusive para cidadãos estrangeiros, desde sejam casais heterossexuais legalmente casados.
Todavia, é certo que a procura por barriga de aluguel no estrangeiro demanda dos pretensos pais um alto investimento, de modo que, aqueles que não possuem condições financeiras para arcar com o procedimento no exterior optam pelo procedimento clandestino no território brasileiro.
CRIANÇAS COM DUPLA NACIONALIDADE
Por fim, imperioso destacar algo sobre a cidadania das crianças oriundas da gestação por substituição. Consoante pode-se presumir, cada situação em particular deverá ser analisada em suas singularidades para fins de definição da nacionalidade, principalmente no que tange à legislação dos países envolvidos.
No caso específico dos bebês nascidos nos Estados Unidos de pais biológicos brasileiros, como o caso de Romeu e Gael (filhos do saudoso Paulo Gustavo), as crianças terão dupla-cidadania, desde que haja seu registro consular. Isso porque a lei norte-americana adere ao critério da territorialidade, por meio do qual a nacionalidade de uma pessoa será determinada através do local do seu nascimento; enquanto a legislação brasileira determina que os filhos de brasileiros nascidos no exterior são brasileiros natos, desde que registrados em Repartição Consular brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A família não se restringe à imposição moral, legal ou social, mas sim à vivência do amor, afeto e respeito.
A reprodução assistida e a gestação por substituição já é uma realidade que há muito vêm trazendo felicidade para aqueles que, por algum motivo, não poderiam desfrutar da maternidade/paternidade naturalmente.
Ocorre que, é premente a necessidade de enfrentamento do tema na legislação brasileira, tendo em vista que o referido fenômeno é regulado de forma frágil, ocasionando uma vulnerabilidade jurídica para aqueles que desejam usufruir do procedimento.
Diante disso, indubitavelmente, o direito brasileiro precisa acompanhar a realidade dos fatos sociais, sobretudo no que tange à reprodução assistida, de forma garantir e assegurar os direitos individuais e autonomia dos novos arranjos familiares. Afinal, como reza Lulu Santos, consideramos justa toda forma de amor.
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Maiara Dias Advogada e Consultora Jurídica de Direito Estrangeiro nos Estados Unidos. Especialista em Direito de Família e Direito Internacional. Diretora da ABA nacional no estado da Flórida e autora de diversos artigos na área de Direito Internacional de Família.
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